Escritos

Post fixo

Olá!
Essa página foi pensada para ser uma espécie de blog, onde vou colocar alguns textos, reflexões, coisas que ando estudando, mas tudo em um formato mais informal mesmo. Seja bem-vind@!

Por que a tela é dividida em duas?

Essa foi a primeira pergunta que surgiu ao assistir a performance “Você se casaria com uma mulher trans?” da artista Rosa Luz. O vídeo tem 2 minutos de duração e a câmera vai passeando em meio a um mercadinho vintage em Glasgow, na Escócia. Sempre em movimento, as imagens de uma câmera ou celular na mão vão revelando bancadas, objetos e mercadorias no chão, pés e pedaços de corpos que circulam por ali. Lembra um pouco gravações caseiras e vlogs de viagem. Ao longo do vídeo, em diferentes momentos, surge e desaparece a pergunta escrita “Would you marry a transgender woman?”. Ouvimos diferentes idiomas, pessoas conversando, crianças gritando. A câmera vai avançando pela rua até revelar, no fim do vídeo, a noiva. Rosa Luz está em pé, imóvel, veste um vestido branco comprido e segura um buquê de rosas. No chão a sua frente vemos um cartaz, também branco, com a pergunta em inglês. A artista permanece no quadro por pouco tempo e logo o vídeo termina.
As imagens e sons da feira parecem não ter conexão nenhuma com a pergunta até ouvirmos uma risada masculina logo após a pergunta surgir na tela. Apesar de ter sido tirada de contexto, nesse caso a risada parece funcionar como a explicitação de uma postura preconceituosa, que ironiza ou não leva a sério questões e problematizações propostas pela transgeneridade. Em outro momento ouvimos uma mulher que parece estar dando alguma orientação, “You have to…” é o começo da sua frase e também pode fazer alusão a reações e comportamentos imperativos diante de outros corpos e existências. Antes do sim ou não, você tem que… se enquadrar, se quiser casar.

Mas por que a tela é dividida em duas?

Ao longo de todo o vídeo há duas telas horizontais e o que vemos na faixa de cima parece ser a continuação do que está na faixa de baixo. As imagens vão mudando, às vezes parecem se repetir, mas sob diferentes enquadramentos. Além das telas, também parece ter sido utilizado algum filtro, que adiciona várias listras às imagens.


Duas telas. Linhas estáticas e retas. Será que a escolha estética busca nos confrontar com nosso próprio binarismo? Homem, mulher. Fêmea, macho. Homem sente atração por mulher e mulher por homem. Opostos que se “complementam”. Penso que foi a forma encontrada de evidenciar na imagem um sistema de organização e normatização de corpos e desejos que há muito vem sendo sustentado. Não há movência, “você nasceu assim, então é isso e precisa se comportar como tal”. Rígido, fixo. Sempre dual, sempre binário. Mas, o curioso é que as telas não são fixas, a de baixo vai sempre subindo, aumentando de tamanho, e quando chega a ocupar quase a tela inteira a imagem é novamente dividida e voltamos a ver as faixas de imagens. Telas o tempo todo em movimento para contrapor a imobilidade das listras, a imobilidade da cisgeneridade. Além de nos convidar ao deslocamento e a colocar em perspectiva o binarismo que nos constitui, o vídeo também se apropria de uma das maiores instituições de manutenção heterossexual e cisgênero: o casamento. A captura desse símbolo também é, em si mesma, uma crítica. Poderíamos perguntar por que casamento, Rosa Luz? Para quê casar? Mas tomar algo conhecido também é uma forma de provocar deslocamentos.
Este vídeo faz parte de uma série de outros três e o lugar e a ação da noiva também vão mudando ao longo das obras. No último, Rosa circula pela cidade se arrastando no chão. O branco do vestido vai ficando cinza com a sujeira das calçadas. A artista vai, silenciosamente, galgando e provocando outras visibilidades. No fim ela se levanta e sai andando, dá as costas pra câmera.            
Para realizar essa performance Rosa Luz permaneceu 15 dias em silêncio, investigando, nas suas palavras, se um corpo fala e como é que ele fala. Adentrando num terreno que por vezes é verborragicamente militante foi uma surpresa boa o processo de pensar em como uma escolha estética pode provocar tantas reflexões, me incitando a ler mais sobre esse universo. Rosa ficou em silêncio e deixou as imagens falarem.

Esse texto foi escrito como exercício de crítica cinematográfica e o vídeo da performance está disponível aqui. Vale a pena navegar pelo canal da Rosa!

poema vida-enigma

Tempos assim despertam
Outros olhares
Faz a gente perceber mais detalhes

As vezes é tanta coisa pra dizer
Que acabo me calando
As vezes é tanto vazio
Que começo a tagarelar

Como andar pela estrada do meio
Se toda e qualquer caminhada já é em si o anseio?
O que é mesmo o que a gente tanto procura?
Será nesse mundo que vamos encontrar as estradas?

Mas como? Se o mundo está de cabeça pra

o
x
i
a
b

E se embaixo do baixo do mundo a gente não vê outra coisa que não…
CSONÃFUO
Como não afundar e sucumbir a tamanha alucinação?

Será simplesmente ponto de vista?
Parece que não
É tanta loucura
Absoluta ilusão
Ser humano é mesmo uma grande interrogação


Mas em algum lugar ela brilha
!Alegria!
Afinal, a vida segue viva!!!

É o que é a vida?
Grande questão
Foi essa mesma pergunta
Que disparou a poesia

Depois de tantas tentativas
Se descortinou fora das linhas
É preciso encontrar os respiros
E a vida pode ser o maior deles

Neste turbilhão em que estamos
A gente é que cria a nossa constelação
Tem uma resposta?
Acho que não

A vida não é outra coisa que não
Ela própria.

o poema e o vídeo foram criados em 2020, como exercício de expressão diante do contexto de pandemia e quarentena. a música original é do ulisses ponte.

#1 reflexões – claudia andujar, espelhos e psicoterapia

Não conhecia o trabalho da Claudia Andujar até janeiro deste ano, quando tive a oportunidade de visitar uma exposição com as fotos dela. Ela nasceu na Suíça e cresceu na fronteira entre Hungria e Romênia, seus pais eram divorciados e ela vivia com a família paterna. Quando começou a Segunda Guerra Mundial seu pai, de origem judaica, foi deportado para um dos campos de concentração nazistas e foi morto, assim como grande parte da família. Claudia e sua mãe conseguiram fugir para a Suíça e de lá, ela emigrou para os Estados Unidos para viver com um tio.
Em 1955 ela veio para o Brasil para reencontrar-se com sua mãe e decidiu fixar residência. Começou a fotografar como uma forma de se comunicar, pois naquela época ainda não dominava o idioma. Como ela mesmo disse, em um dos vídeos para o Instituto Moreira Salles, a sua fotografia “nasce da necessidade de se comunicar com o povo brasileiro”. Ela passa a colaborar com várias revistas nacionais e internacionais. Em uma edição especial da revista Realidade, que a leva até a Amazônia ela conhece os Yanomami. Após esse encontro, com o intuito de conhecer mais profundamente a cultura desse povo, decide viver entre Roraima e Amazonas em tempo integral.

Passa não só a fotografar a cultura Yanomami, mas a se envolver com as causas e lutas políticas, já que o território e a vida dos Yanomami estavam sendo ameaçados pelos projetos de desenvolvimento do governo militar vigente. Junto com o missionário Carlo Zacquini e o antropólogo Bruce Albert eles fundam, em 1978, a ong comissão pró-yanomami (ccpy), que desempenha um papel bem importante na luta pelos direitos desse povo até hoje, pois assim como grande parte dos povos indígenas, os Yanomami continuam sofrendo ameaças e tendo seus territórios desrespeitados.
A exposição era bem grande, com dois andares de fotografias, que guiavam a gente pelo trabalho dela com os Yanomami. São mais de 40 anos fotografando e contribuindo para a proteção desse povo!
O que achei interessante, e a exposição também vai destacando isso, é que ela não só documenta a vida e as pessoas, mas explora diferentes técnicas fotográficas que refletem seu profundo envolvimento com os yanomami e também marcam seu estilo de intervenção artística que intenta transmitir as experiências e sensações que atravessam um mundo diferente do nosso.
Ela adotou lentes grande angulares e aplicava vaselina nas bordas das lentes, o que cria um efeito bem interessante de desfoque, também usava filmes infrared e filtros coloridos, intensificando a atmosfera surreal das suas imagens. 

Uma das seções da exposição é dedicada a uma série de fotografias que ela realizou em um ritual chamado reahu. Trata-se de um evento importante para a vida social yanomami e pode durar dias ou mais de uma semana. A cerimônia reúne diferentes comunidades e é também um ritual funerário. Músicas, dança e abundância de alimentos fazem parte do evento. Ao final, todos os homens presentes inalam a yãkoana, pó extraído de uma árvore de mesmo nome na floresta amazônica e que tem o papel de trazer conhecimento a eles.
Claudia Andujar captura os vários aspectos do ritual também explorando diferentes maneiras de fotografar. Ela utiliza baixas velocidades no obturador, flashes e lâmpadas a óleo para criar rastros brilhantes de luz e movimentos borrados. Também cria múltiplas exposições, que imprimem vários corpos em um mesmo frame, para sugerir a presença de muitas pessoas e a conexão espiritual que todos os presentes compartilham.

É muito bonito ver o trabalho dela e como ela faz as possibilidades e ferramentas técnicas conversarem com o que ela está vivendo! Ela coloca a técnica em função do que ela está experienciando e sentindo (e não o contrário) e isso ajuda a criar significados e sensações que ultrapassam a dimensão visual. Ela busca entender e capturar a experiência e não apenas documentar.
Em meio aos painéis e fotografias me deparei com essa frase, escrita por ela:

 “fotografia é o processo de descobrir o outro e, através do outro, a si mesmo. intrinsecamente é por isso que o fotógrafo busca e descobre novos mundos, mas no final, sempre revela o que está dentro de si.”

Ao ler comecei a pensar na relação entre a fotografia e a psicoterapia e foi essa conexão que motivou a escrita deste texto. Fiquei pensando em como existem paralelos entre essas duas atividades. Quando começamos a fazer análise muitas vezes levamos para as sessões questões que envolvem outras pessoas, incômodos, chateações, inspirações, enfim, e durante todo o processo a gente vai aprendendo que em muitos casos, não todos, o que chama a atenção no outro também revela um aspecto nosso. Às vezes são aspectos que apontam algumas dificuldades, outras podem ser aspectos de afinidades ou potencialidades, mas que são percebidos através desse olhar para o outro. Sinto que é como se essas duas dimensões, interno-externo, estivessem sempre conectadas e aí, falar do outro é, em alguma medida, também falar da gente mesmo. Olhar para o outro provoca um olhar para o nosso interior e esse olhar interior transforma nosso olhar para o exterior e assim infinitamente…
Acho que ter a dimensão dessa transformação infinita é uma das coisas mais bonitas de um processo terapêutico!
Gosto da imagem do espelho para pensar esse “jogo” nas relações. Quando começamos a observar a nossa própria família, por exemplo, a gente pode se dar conta de uma série de padrões e características que vamos reproduzindo e que, nas suas complexidades, refletem impulsos e tendências que também constituem nossos pais, avós ou outras pessoas da família. Por isso é tão importante olhar para esse espelho, para ir filtrando o que é nosso, o que não é, o que está se repetindo e o que pode ser transformado. Durante essa jornada vamos nos descobrindo através do outro e, simultaneamente, descobrindo o outro, como sugere a Claudia Andujar.
Esse foi um dos efeitos da análise, na minha experiência, de olhar para os meus pais fora do papel de pais, descobrir eles além dessas figuras. Isso me ajudou a tentar compreender quem eles são e não quem eu espero que eles sejam.
Espelhos…

Essas foram algumas ideias que me ocorreram e que compartilho aqui como um texto de estreia. A gente pode pensar em como esse processo atravessa outras atividades também. Buscar entender o outro e simultaneamente entender a si próprio talvez faça parte do enigma que move a produção de conhecimento e arte da humanidade, mas isso seria assunto para um outro post…

*todas as fotos utilizadas aqui são da fotógrafa e foram retiradas da internet.

o tempo é uma experiência

Ela descia a rua São Paulo todas as quintas. Caminhando ia sentindo o calor do sol que marca sua presença depois das 12 horas. Depois de algumas semanas percorrendo o mesmo trajeto, em certa quinta-feira, a dois quarteirões do seu destino, na calçada oposta à do posto de gasolina (quando pode, ela prefere evitar passar por lugares onde há muitos homens aglomerados), um rapaz alto, loiro, de óculos escuros passou por ela, estavam mais ou menos no meio da calçada. Reparou nele como geralmente repara nas pessoas que encontra pela rua. O motivo dele ter sido destacado aqui vocês logo saberão. Continuou seu caminho sem grandes fatos. Às 14 horas chegou em seu trabalho. Isso se repetiu por mais duas ou três semanas. Via o mesmo rapaz sempre na mesma altura da mesma calçada e chegava em seu destino às 14 horas. Lá pela quarta ou quinta semana, o almoço atrasou, ela se distraiu no celular, vortex virtual de cada dia. Quando se deu conta, pegou suas coisas e apertou o passo. Descendo pela mesma rua encontrou o referido rapaz no começo da referida calçada, depois de tantos encontros seguidos começaram a se cumprimentar, afinal, já não podiam dizer que eram estranhos um para o outro. Seguiu seu caminho, com um pouco mais de pressa do que o habitual. Chegou em seu trabalho e já havia alunos na sala. 14:07. Na semana seguinte, organizou-se melhor e, caminhando com mais calma, foi ver o rapaz faltando um quarteirão para chegar. Sorriram. Entrou no prédio, foi para sua sala, havia uma aluna dentro da sala, tirou o celular da bolsa para ver a hora. 13:55. Sorriu de novo. Com o correr das semanas, percorrendo sempre o mesmo trajeto, passou a adivinhar que horas seria orientada pela altura em que encontrava o rapaz. Encontrou seu relógio. Quando estava atrasada, assim o sabia por que o encontro se dava no quarteirão de cima do posto de gasolina. Quando, raras vezes, conseguia sair adiantada, o encontro se dava mais perto de seu destino. E em todas as outras vezes, no intuito de ser pelo menos pontual, o encontrava mais ou menos no meio do quarteirão, na altura do posto, mas sempre na calçada oposta ao estabelecimento. Já não precisava tirar o celular da bolsa para conferir o horário, pois esperava por seu relógio caminhante. Tempo e espaço realmente andam de mãos dadas. Numa quinta, descendo a rua São Paulo, como já sabem que fazia sempre e sem grandes surpresas, não viu o rapaz. E agora? Ou estava muito adiantada, o que soaria improvável, mesmo para ela, ou estava muito atrasada, o que também causaria desconfiança. Entrou na sala. 13:58. Na semana seguinte, desceu a rua se sentindo curiosa, mas não o viu de novo. A experiência virou outra. E certamente O tempo foi caminhar por outros trajetos.