Por que a tela é dividida em duas?

Essa foi a primeira pergunta que surgiu ao assistir a performance “Você se casaria com uma mulher trans?” da artista Rosa Luz. O vídeo tem 2 minutos de duração e a câmera vai passeando em meio a um mercadinho vintage em Glasgow, na Escócia. Sempre em movimento, as imagens de uma câmera ou celular na mão vão revelando bancadas, objetos e mercadorias no chão, pés e pedaços de corpos que circulam por ali. Lembra um pouco gravações caseiras e vlogs de viagem. Ao longo do vídeo, em diferentes momentos, surge e desaparece a pergunta escrita “Would you marry a transgender woman?”. Ouvimos diferentes idiomas, pessoas conversando, crianças gritando. A câmera vai avançando pela rua até revelar, no fim do vídeo, a noiva. Rosa Luz está em pé, imóvel, veste um vestido branco comprido e segura um buquê de rosas. No chão a sua frente vemos um cartaz, também branco, com a pergunta em inglês. A artista permanece no quadro por pouco tempo e logo o vídeo termina.
As imagens e sons da feira parecem não ter conexão nenhuma com a pergunta até ouvirmos uma risada masculina logo após a pergunta surgir na tela. Apesar de ter sido tirada de contexto, nesse caso a risada parece funcionar como a explicitação de uma postura preconceituosa, que ironiza ou não leva a sério questões e problematizações propostas pela transgeneridade. Em outro momento ouvimos uma mulher que parece estar dando alguma orientação, “You have to…” é o começo da sua frase e também pode fazer alusão a reações e comportamentos imperativos diante de outros corpos e existências. Antes do sim ou não, você tem que… se enquadrar, se quiser casar.

Mas por que a tela é dividida em duas?

Ao longo de todo o vídeo há duas telas horizontais e o que vemos na faixa de cima parece ser a continuação do que está na faixa de baixo. As imagens vão mudando, às vezes parecem se repetir, mas sob diferentes enquadramentos. Além das telas, também parece ter sido utilizado algum filtro, que adiciona várias listras às imagens.


Duas telas. Linhas estáticas e retas. Será que a escolha estética busca nos confrontar com nosso próprio binarismo? Homem, mulher. Fêmea, macho. Homem sente atração por mulher e mulher por homem. Opostos que se “complementam”. Penso que foi a forma encontrada de evidenciar na imagem um sistema de organização e normatização de corpos e desejos que há muito vem sendo sustentado. Não há movência, “você nasceu assim, então é isso e precisa se comportar como tal”. Rígido, fixo. Sempre dual, sempre binário. Mas, o curioso é que as telas não são fixas, a de baixo vai sempre subindo, aumentando de tamanho, e quando chega a ocupar quase a tela inteira a imagem é novamente dividida e voltamos a ver as faixas de imagens. Telas o tempo todo em movimento para contrapor a imobilidade das listras, a imobilidade da cisgeneridade. Além de nos convidar ao deslocamento e a colocar em perspectiva o binarismo que nos constitui, o vídeo também se apropria de uma das maiores instituições de manutenção heterossexual e cisgênero: o casamento. A captura desse símbolo também é, em si mesma, uma crítica. Poderíamos perguntar por que casamento, Rosa Luz? Para quê casar? Mas tomar algo conhecido também é uma forma de provocar deslocamentos.
Este vídeo faz parte de uma série de outros três e o lugar e a ação da noiva também vão mudando ao longo das obras. No último, Rosa circula pela cidade se arrastando no chão. O branco do vestido vai ficando cinza com a sujeira das calçadas. A artista vai, silenciosamente, galgando e provocando outras visibilidades. No fim ela se levanta e sai andando, dá as costas pra câmera.            
Para realizar essa performance Rosa Luz permaneceu 15 dias em silêncio, investigando, nas suas palavras, se um corpo fala e como é que ele fala. Adentrando num terreno que por vezes é verborragicamente militante foi uma surpresa boa o processo de pensar em como uma escolha estética pode provocar tantas reflexões, me incitando a ler mais sobre esse universo. Rosa ficou em silêncio e deixou as imagens falarem.

Esse texto foi escrito como exercício de crítica cinematográfica e o vídeo da performance está disponível aqui. Vale a pena navegar pelo canal da Rosa!